.................. APOLOGIA DOS BURROS

 

 

 

Com que direito um indivíduo inteligente critica outro por ser estúpido?

Uma criatura estúpida terá alguma culpa da sua estupidez?

Geralmente todos dizem que há um grande abismo entre um génio e um idiota. Haverá?

Que culpa tem o génio de ter nascido génio e o idiota de ter nascido idiota?

Ou será que o idiota tem possibilidades de se transformar em génio e pura e simplesmente não o deseja? Mas também se o desejasse talvez mais valesse continuar a ser idiota do que ser um génio como alguns que por aí há que não passam de idiotas por terem tantas pretensões à genialidade.

Menospreza-se um ser humano só porque a mãezinha e o paizinho não tiveram a feliz ideia de lhe ceder uns genes hereditários (que se calhar também já não possuíam ou estavam muito atrofiados) com uma boa dose de inteligência.

Felizmente a Humanidade arranjou talvez sem querer uma forma de defender alguns destes desgraçados: o Capitalismo.

Como todas as coisas ou quase todas arranjadas pela Humanidade esta também enferma de muitos defeitos.

Assim vêem-se muitos desperdiçar o dinheiro duma forma estúpida ou guardá-lo a sete chaves (o que ainda é pior) e muitos outros a precisarem de

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o desperdiçar em coisas úteis para a Humanidade e sem o terem sequer para as suas necessidades.

E os que não têm dinheiro nem inteligência transformam-se muitas vezes na escória da Humanidade (e só por culpa dela).

E chamamos os outros animais de animais inferiores. Inferiores eles que têm sempre lugar para um da mesma espécie, que lutam pela vida nas mais duras circunstâncias, mas nunca ou quase nunca matam um da mesma espécie.

Parece-me que com toda a sua inferioridade são mais inteligentes que nós e deviam ter um lugar de destaque na nossa Sociedade. Pelo menos para nos servirem de exemplo. Aprenderíamos a não desprezar os nossos semelhantes só porque a cor da pele não é a mesma ou o quociente de inteligência não está acima daquele mínimo indispensável para sair do grupo dos cretinos.

Podem dizer que estou a exagerar, que não desprezamos os estúpidos assim como não desprezamos os pobres.

Pois sim! Mas não os tratamos como iguais. Damo-lhe uma esmola.

Sempre agradeci todas as ajudas que me deram, mas já recusei ajudas só porque não eram ajudas, eram esmolas. E eu não gosto de esmolas. Têm sempre uma intenção de humilhar, de rebaixar.

E ao elevarmos a um pedestal muito alto, ao endeusarmos a genialidade dos homens, estamos a ofender os menos dotados que não tiveram culpa nenhuma de lá não poderem chegar.

Tanto valor tem um varredor da rua como um professor catedrático. Tanto valor tem um moço de fretes como um chefe de estado. Isto é o que dizemos. Mas como procedemos na prática? Sim, mesmo nos países que se dizem mais civilizados?

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Criamos tacitamente uma escala de valores para remunerar e diferenciar. Mas esses valores não são só em dinheiro. São em tudo. Em honras, em considerações, etc., etc., etc.

É condenável um estúpido pôr limitações a um indivíduo mais inteligente só pela simples razão de não se deixar ultrapassar.

E é condenável um inteligente, só porque algumas vezes botou cá para fora umas ideias acertadas, refugiar-se num pedestal (o pedestal dos génios) e não reconhecer as suas asneiras e, o que ainda é pior, pensar que os outros todos são uma cambada de burros e situá-los num nível muito rasteiro.

Aliás é errado situar uma pessoa permanentemente num determinado nível, pois um estúpido pode fazer muitas coisas acertadas e ter intuições geniais, e um génio pode fazer muitas asneiras e ter intuições estúpidas.

E além disso o pensamento tem flutuações constantes entre a inteligência e a imbecilidade.

Devemos considerar um inapto como um doente que tem possibilidades de se curar.

Assim como um génio se pode transformar num imbecil através da loucura, também um inapto se pode transformar num génio se for auxiliado e tiver tempo para curar a sua inaptidão.

Um macaco já pode falar com o homem através dum computador. O computador veio ajudar o macaco na sua inaptidão. Veio dar-lhe algo que lhe faltava.

Algum treino adequado pode desenvolver uma inteligência embotada.

Mesmo nas pessoas mais estúpidas e cretinas vêem-se por vezes rasgos de genialidade. Se bem que fugazes e instantâneos e só perceptíveis por outras pessoas mais dotadas, poderiam com a ajuda destoutras

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pessoas virem a ser percebidos por esse espírito embotado.

Seria como que um rastilho para atear uma explosão de luz. E esse espírito teria possibilidade de desenvolver e remexer escaninhos secretos da sua mente que nunca pensara que existissem sequer.

Que faz a Humanidade?

A pouco e pouco convence um burro de que ainda é mais burro do que aquilo que pensava.

É como aquela enfermeira empedernida à custa de muitos anos de hábito que pouco a pouco passa a tratar os seus doentes com muito menos carinho.

Um estúpido é um doente do espírito que, mais que os doentes do corpo, precisa de carinho, compreensão e ajuda.

Evidentemente o melhor passo para uma cura será a colaboração do doente. Assim o doente terá de compreender que o querem ajudar e não humilhar ou rebaixar.

Em tempos escrevi:

«Se chamares a um homem burro, ele ficará menos burro. »

Parece um contra-senso.

Que queria eu dizer?

Primeiro é preciso termos alguma coragem para chamarmos burro a um indivíduo, principalmente se esse indivíduo se situar alguns degraus acima na nossa escala hierárquica e/ou potencial.

Depois duas coisas podem acontecer:

Ou esse indivíduo mais tarde ou mais cedo se convence da sua asneira e, dando ou não o braço a torcer, tem possibilidades de se corrigir e, pelo menos, não voltar a cair noutra idêntica, ou não se convence e nos mostra como teremos de tratar com ele.

Nesta última hipótese, e ainda que nós não

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tenhamos razão, ele ficará a pensar no assunto mesmo que não queira e, portanto, com possibilidades de o analisar profundamente adquirindo assim mais conhecimentos.

Quantas vezes depois disso e quando os ânimos estão menos exaltados, ele vem ter connosco e nos diz: «Olhe lá! Sobre aquele assunto do outro dia Você não tinha razão por mais isto e mais aquilo.»

É uma maneira muito correcta de nos retribuir o cumprimento!

Será a nossa vez de ficarmos a magicar no assunto.

Só numa Sociedade de quimera é que poderia haver solução para este estado de coisas.

Uma Sociedade formada por seres polivalentes. Seres que dividissem as suas ocupações em dois grandes grupos.

Um grupo de ocupações privilegiadas como: professores, chefes, estudantes, ou antes, estudiosos, médicos, cientistas, etc.

Outro grupo de ocupações de utilidade pública como: pedreiros, carpinteiros, varredores, trabalhadores rurais, ajudantes, e todas as ocupações consideradas duras e árduas indispensáveis à Sociedade.

Qualquer criatura teria obrigatoriamente de dividir o seu tempo de trabalho em duas partes iguais.

Uma parte obrigatória para distribuir pelas ocupações de utilidade pública numa rotação que passaria por várias ocupações segundo a sua robustez, saúde e outras características.

A outra parte para se dedicar a uma só das ocupações privilegiadas consoante o seu gosto e onde poderia desenvolver a sua capacidade como ser racional e inteligente.

Se quisesse ocupar esta segunda parte com ocupações de utilidade pública deveria ser

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analisada a sua sanidade mental e, enfim, quem corre por gosto não cansa...

Estes dois grupos de ocupações poderiam ter permuta de ocupações conforme a exigência das circunstâncias e, em caso de força maior, poderia ser obrigatório o tempo total nas ocupações de utilidade pública.

Mas isto infelizmente é pura utopia e terão de continuar os génios a levarem os benefícios maiores e os burros a contentarem-se com o que puderem abocanhar.

A não ser que surja qualquer dia, por artes mágicas, o Império dos Burros (que não tenham pretensões a génios).

E parece-me que já não vem longe esse dia, pois já há alguns reinozitos de burros, mas ainda com muitas pretensões a génios.

Sentir-me-ei lisonjeado se alguém julgar (cuidado!!! que pode morrer!! pois a julgar morreu um burro!) que não escrevi como um génio nem como um burro.

 

Junho de 1974

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( Extraído de um livro )

(Para aperfeiçoar)