A INVENÇÃO DA INFÂNCIA
Tenho em mim murmúrios de ribeiro e uma asa
de borboleta quase anil. Recordo ventanias
que são verdes, flutuando na agonia
do ar, e outros irmãos da escuridão que vem.
Depois da trovoada, a terra
cresce-me no peito cor de rola,
tufado, impoluído pela idade do mundo
após a chuva. Os ramos tecem com os nós uma estação
inteira, desenham viagens - para onde?
As rosas aguçam a ideia de espirais, de grandes
mansões esplêndidas de azul, e então as andorinhas
constroem com a sua faca de alegria, mas só
dentro do peito, há muitos anos.
Tenho comigo as espigas barbirruivas, a palha
cravada contra o corpo, as linhas do sol
pela janela. Invento o brilho molhado da azeitona,
o som que torna felizes os azuis e o ziguezague
do mundo entre crisântemos, invento a névoa
por entre a relva espástica do outono, a erecção
humilde das candeias e o seu burel de roxo
entumecido, e todas as plantas que rezam
o rosário e mascam orações contra o inverno.
Ouço os cães que rosnam nas vielas,
nos velhos fedores da lentidão que avança.
E a aldeia fermenta e cheira a pão
no fumo que sai da chaminé atrás do vento:
tudo isto apodrece no cinzento,
tenho comigo o tempo de ninguém.