POEMAS
A INVENÇÃO DA INFÂNCIA
Tenho em mim murmúrios de ribeiro e uma asa
de borboleta quase anil. Recordo ventanias
que são verdes, flutuando na agonia
do ar, e outros irmãos da escuridão que vem.
Depois da trovoada, a terra
cresce-me no peito cor de rola,
tufado, impoluído pela idade do mundo
após a chuva. Os ramos tecem com os nós uma estação
inteira, desenham viagens - para onde?
As rosas aguçam a ideia de espirais, de grandes
mansões esplêndidas de azul, e então as andorinhas
constroem com a sua faca de alegria, mas só
dentro do peito, há muitos anos.
Tenho comigo as espigas barbirruivas, a palha
cravada contra o corpo, as linhas do sol
pela janela. Invento o brilho molhado da azeitona,
o som que torna felizes os azuis e o ziguezague
do mundo entre crisântemos, invento a névoa
por entre a relva espástica do outono, a erecção
humilde das candeias e o seu burel de roxo
entumecido, e todas as plantas que rezam
o rosário e mascam orações contra o inverno.
Ouço os cães que rosnam nas vielas,
nos velhos fedores da lentidão que avança.
E a aldeia fermenta e cheira a pão
no fumo que sai da chaminé atrás do vento:
tudo isto apodrece no cinzento,
tenho comigo o tempo de ninguém.
JE T'AIME
Eu digo: meu amor, e tudo pára,
sufocado por estas emoções; assim se compreende
este silêncio, este esmagar do pensamento
que sai pelas janelas e ameaça a ordem
como um mau romance de aventuras.
Amo-te e isso é tão intenso
que deixo de sentir para não morrer, que prudência,
a da madre natureza que nos impede a explosão,
seria um belo espectáculo, de repente,
cobrirem-se as árvores de estilhaços, e penderem
corações amarrotados das paredes - o excesso
é sempre punido pela ausência.
Amo-te porque isto é um devir
até eu não te amar, amo-te porque me permito
esta lição de como flutuar num meio hostil:
aconteceu em seta, cognição vermelho largo,
cópula imaginária de profetas e grandes
marés de medo e ousadia.
Entendes que o amor é este peso enorme,
que obriga a rigorosos horários para branquear
o universo, implica um rigor, uma apneia
constante, uma fumigação dos ruídos excessivos,
uma atenção ao silêncio em que o outro - um parasita -
nos afoga? Quem falou nos trabalhos do amor, sabia
o que dizia: a alegria cansa e as estrelas alargam-se em luzeiros
na noite que entra dentro do relógio.
Os animais sem loucura rastejam devagar,
as plantas ganham folhas e amplidões onde descubro
pássaros e pássaros poisados, transparentes, com ar
malicioso - eles sabem disto tudo.
O mundo dança estas paixões todos os dias
com um ritmo de alegria desleal:
todos os dias alguém diz a suspirar
je t'aime mon amour etc e tal.