SELECÇÃO DE POEMAS DE "À PORTA DE NÁRNIA" (1995)

 

    RUÍDOS

 

Ouve-se o comboio em Vale de Cavalos, vai chover

flauta de capador, amola-tesouras e navalhas, vai chover

o gato amarelo coça a orelha, taca-taca-taca

e lava o focinho com a pata, vai chover

os garotos fazem assuada no largo ao cair da noite, é porque

o vento vai mudar, vem lá o suão

as janelas de guilhotina, toda a noite, tromtom, tromtom

o relógio da igreja, um coração de boi; tuc; tuc; pausado,

também só se ouve à noite. E as corujas!

O caruncho que rói toda a mobília,

ouvem-se os séculos assim, de vez em quando

o pingue-pingue de uma beira, é preciso ver o telhado

nas bacias de lata, plig agora, plig depois

os pés das miúdas a correr nas tábuas do soalho. Oco.

A goiva e a plaina na casa das ferramentas

o canto furioso do galispo no pátio, picou o rabo

a uma criança, o bicho é cá de uma força

os passos da criada que traz a água para a barba

o som do púcaro contra as paredes do cântaro

o jorro do azeite não faz barulho no funil

o batente da porta lá em baixo

trás-trás, bola de ferro,

o carteiro que se anuncia com uma espécie de pregão

o ruído das botas da peixeira, a canastra de enguias que ela poisa

o som cavo dos poceiros a cair no chão. Plaff.

O metralhar da azeitona. Arrastar a dorna.

Os gaiteiros, caixa, bombo e gaita-de-foles

foguetes, repique, morteiros, colchas nas janelas

o estalido dos interruptores, são tão velhos! Logo do princípio.

O riacho que pinga dos vasos de aspidistra. Culpa. água demais.

Os cascos do burro do moleiro, cloc-cloc-cloc, é sempre

por volta das três; cheiro da farinha

o apito do sud, são horas de lanchar

As campainhas das bicicletas ao entardecer - porquê este ladrido?

Toom-dim, toom-dim-dim, e quem morreu?

O rangido do guarda-vestidos, da segunda gaveta da cómoda, da porta para o escritório, do armário da sala-de-jantar, do postigo da copa,

das escadas, dezassete degraus, sempre os contei

 

e o som que os ratos acordavam no velho clavicórdio

e o som do piano - armação de madeira

e da grafonola - onde está? - cheia de gravilha. Fados.

e o som dos tangos no pick-up, ensinam-se os primos a dançar

à média luz te vi, dois para a frente, um para trás. Cepos!

 

foram estes os sons