SELECÇÃO DE POEMAS DE "COBRA DE PAPEL" - 1997

 

   SINOS

 

"Tocam sinos mas não foi por mim"

Ruy Cinatti

Tocam os sinos. Se calhar, foi porque eu morri.

De sarampo. De bexigas loucas. De medo

de morrer, ou de descrença no padre, das poucas

coisas que me ficaram desde a adolescência

 

Morri assim, com um tiro na garganta,

que alguém me deu por compaixão. Morri afogada

no fundo de um lugar, a quinze milhas marítimas da costa.

Morri de pasmo: uma inclinação cobarde e assustada

da coluna vertebral, tão devagar

 

Morri mole de mimo, conservando

a forma oblonga de um regaço.

Morri de preto por tolos desencontros,

ódios e paixões, o sangue pinga na ribalta. Morri

da luz demasiada das cidades, morri cheia de fome,

morri com o nariz luzidio e os olhos tristes

 

Morri do coração, da cabeça, dos pulmões,

dos braços e das pernas, das

vísceras diversas que me conduziam

pelo mundo. Morri, e o sino dobra.

 

Morri de raiva, de cancro, de tuberculose, tudo coisas

que trago dentro da barriga. Morri com as palmas das mãos

suadas, a um domingo. Morri de febre terçã,

de pântanos, de clorose, de seringas

sujas, morri de odores compartilhados. Morri

de azul claro, imaculada, com uma serpente

debaixo das chinelas. Morri com os ossos esmagados

sem saber, morri com os olhos sumidos pela casa

 

Morri à tardinha, ou de manhã? O som

do sino é mais claro agora, como o dia? As cortinas

estremecem com o ruído ? Os outros sons

envolvem-se de branco?

 

Morri e o corpo está inquieto, recusa-se

a parar. Morri ao som da dança, em pleno

momento de atirar ao alvo. Morri,

estou toda morta e ainda morro.

Morri cedo de mais e o sino toca